RICARDO HIROSHI BOTELHO YOSHINO Advogado - OAB/SP 203.816
Em "O Leviatã", publicado em 1651, Thomas Hobbes explorou a natureza humana e a necessidade de um governo centralizado e forte para evitar o caos e a guerra civil.
Com o surgimento do Estado moderno, este passou a permear a vida em sociedade, em todas as suas nuances. Assim, a relação entre o Estado e os cidadãos é complexa, abrangendo direitos, deveres e, inevitavelmente, sentimentos.
Desse modo, o Estado, representado por seus agentes, deve atuar de forma a garantir a ordem e a segurança, mas também deve se sensibilizar e compreender as emoções dos cidadãos, especialmente em momentos de grande sofrimento.
Com estas breves linhas, trazemos a possibilidade de o Estado relevar algumas condutas em casos específicos, levando em consideração o estado emocional dos cidadãos.
Desde já, entretanto, deixo claro que não se pretende, de maneira nenhuma, relevar condutas penalmente relevantes, mas sim, determinadas atitudes, tudo em prol do bem comum.
O Estado e os Sentimentos dos Cidadãos.
Os atos do Estado são instrumentalizados por pessoas: os agentes públicos.
No cotidiano, esses agentes se relacionam diretamente com os cidadãos, seja para atendimento médico, policial, jurisdicional etc., o que pode gerar, e de fato gera, situações fáticas e de sentimentos, tais como a confiança e a segurança, e até o medo, a raiva e a frustração.
Por isso, é necessário e fundamental que os agentes públicos estejam atentos a esses sentimentos, visando sempre o bom convívio e o atendimento à razoabilidade e à proporcionalidade.
O Caso da Mãe Enlutada.
Assistimos, perplexos, ao que foi veiculado pelas mídias acerca da abordagem policial àquela família que recentemente perdera um filho.
E, aqui, registre-se: independente do que tenha ocorrido, a morte de um filho é trágica para toda a família, mas deve ser insuportável para uma mãe.
Com efeito, em casos tais – perda de um ente querido por ação do Estado, na visão de mãe –, há que se ter complacência com o semelhante. Ninguém deve imaginar a dor daquela mãe! Seus sentimentos de tristeza, raiva e revolta tomam conta de seu coração e de sua mente e devem ser avassaladores.
Portanto, ao cruzar com uma viatura ou ser abordada como retratou o vídeo, ao expressar sua repugnância por meio de gestos ou palavras, é uma situação que, parece, merece ser cuidadosamente analisada.
Os Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade.
A dinâmica dos fatos, pelo que foi divulgado, se deu exatamente nesse contexto. Ao reconhecer um policial que, segundo a mãe, fora um dos responsáveis pela morte de seu filho, ela acabou por agredi-lo verbalmente e com gestos.
Estranha-se que a atitude do agente não tenha sido tomada tão logo o desencadear do fato. Pelo vídeo, após o ocorrido e já estando a caminho de sua casa, a viatura veio ao encalço e, a partir de sua parada, descortinou-se o triste episódio que assistimos.
Mas vamos lá. Sabedores do fato anterior e imaginando a dor daquela mãe, será mesmo que haveria de persegui-la, se os fatos já tinham ocorrido quando da sua saída do estabelecimento de saúde em que se encontrava?
A pergunta a responder é a seguinte: será que, se sentindo difamado ou mesmo desacatado, não poderia a autoridade policial ter registrado o boletim de ocorrência, deixando que o Estado-juiz (Poder Judiciário) fizesse seu papel?
Afinal, como decidiu o Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADPF 496, "Os agentes públicos em geral estão mais expostos ao escrutínio e à crítica dos cidadãos, devendo demonstrar maior tolerância à reprovação e à insatisfação, sobretudo em situações em que se verifica uma tensão entre o agente público e o particular".
Deveras, fosse com qualquer outro tipo de agente público ou contra cidadão sem cargo, era exatamente isso que ocorreria!
Parece claro, então, que o direito daquele que se sentiu ofendido deveria ceder espaço à manifestação de incivilidade demonstrada pela mãe, uma vez que a aplicação rígida da lei ocasionará ainda mais sofrimento e injustiça.
É preciso considerar que a conduta daquela mãe – na versão policial: verberar a palavra "assassino" e fazer gestos ofensivos –, embora possa ser considerada uma infração penal, é motivada por um sentimento que ela, nesta condição, entende legítimo. Meu Deus, ela perdera um filho!
Portanto, puni-la – ainda mais – seria desconsiderar a sua condição humana e o sofrimento que está enfrentando.
A Discricionariedade do Agente Público.
Seguindo, tivesse o policial se colocado no lugar daquela mãe – empatia –, nada disso teria ocorrido. Tivessem a proporcionalidade e a razoabilidade entrado em campo, o agente poderia ter optado por não reprimir a conduta, considerando as emoções que correm "nas veias" daquela genitora e a ausência de um mínimo risco à ordem pública.
E é de se deixar muito claro que uma decisão assim não significaria ignorar a lei e a autoridade do agente, mas sim, aplicá-la – a lei – de forma justa e humana. E quanto à insígnia – autoridade –, seria um modo de compreender melhor a alma humana.
Mas a decisão foi outra. E, aqui, grifa-se: a ação de abordar foi e é legítima!
Na plenitude de minha capacidade cognitiva, sou capaz de entender as atitudes de ambos: da mãe que esbraveja porque entende que perdera o filho pela conduta policial, e do agente que se sente ofendido com as palavras e gestos perpetrados.
Registre-se, também, que, decidindo pela perseguição, não haveria conduta outra a tomar, diante do que mostra o vídeo, a não ser eventualmente imobilizá-la e, moderadamente, fazer o que deveria ser feito.
Entretanto, o que avistamos foi um episódio triste – lamentável para nossa cidade, para a cidadania e para a instituição Polícia Militar –, protagonizado por todos e consubstanciado na ausência de civilidade, na violência e na inescondível falta de preparo.
Seria plenamente legítima, então, a conduta de abordagem e, eventualmente, a prisão, no caso de continuidade do palavreado desrespeitoso e de pontapés, mas, a partir daí, estando já imobilizada e tendo havido agressão por parte dos agentes do Estado, ultrapassaram-se os mais elementares deveres da profissão.
Vale dizer: se no início a conduta era legal, passou-se à ilegalidade pela falta de preparo e pela violência demonstradas.
Conclusão.
Em situações como a aqui analisada – perda de um ente querido por ação do Estado –, é fundamental que os agentes públicos atuem com sensibilidade e compreensão, relevando condutas motivadas por dor e revolta.
E isso porque a aplicação da lei deve obedecer a um critério mínimo de justiça, e os atos do Estado devem ser mais humanos e obedecer à razoabilidade e à proporcionalidade.
Por isso mesmo, levando em consideração as emoções que afloram àquela mãe e a ausência total de risco à ordem pública, poderia o fato ter passado desapercebido, sem que tal pudesse ser considerado ofensivo ao Estado e aos seus agentes.
E.T.: Tenho certeza absoluta que todos estão arrependidos, por isso sugiro um mediador que possa aclarar os fatos para os envolvidos, visando evitar novos episódios.
RICARDO HIROSHI BOTELHO YOSHINO
Advogado – OAB/SP 203.816
Advogado especialista em Direito Tributário. Portador da Comenda da Ordem do Mérito Cívico e Cultural. Agraciado com Medalha Raimundo Paschoal Barbosa
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Fonte: RICARDO HIROSHI BOTELHO YOSHINO